A gracinha que perde a graça

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Antônio Carlos Malheiros, desembargador do Tribunal de Justiça e coordenador da infância e da juvent

Sabe aquele engraçadinho que vive pondo apelido cruel nas pessoas? Ou aquele menino que vive debochando da fraqueza, ou defeito, do coleguinha? Isso é bullying – um tipo de violência, de humilhação, de intimidação, que acontece no trabalho, no clube e, principalmente, nas escolas – motivo desta entrevista com Antônio Carlos Malheiros. Ele é desembargador do Tribunal de Justiça e coordenador da infância e da juventude do Tribunal de Justiça que abrange todo o Estado de São Paulo, além de professor de teoria geral do estado, de direito de família e suspensões, de direitos humanos e de ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente nas faculdades Rio Branco, PUC e UniAnchieta. Através da Coordenadoria da Infância e da Juventude, ele está desenvolvendo neste semestre uma luta contra o crack, que já mata inclusive crianças. Além disso, ele ainda encontra tempo para mais tarefas (segundo ele, a melhor de todas): é palhaço e contador de histórias para crianças hospitalizadas no Hospital Emílio Ribas, na Associação Viva e Deixe Viver, do qual também é fundador. Seu envolvimento e profundo conhecimento sobre bullying provocou esta entrevista, que você acompanha a seguir.

O bullying é uma coisa que tomou uma proporção exagerada nos dias atuais?
O bullying sempre existiu, desde o início da humanidade. Os mais fortes zombam, humilham, assediam os mais fracos. Não existe nenhum de nós que não tenha, um dia, um aborrecimento na escola. Eu tenho até uma história que conto para meus alunos na aula de teoria de ciência política sobre terrorismo: o terror é injustificável, mas é completamente explicável.

Como assim?
Eu me lembro de um bullying que sofri na escola, por volta dos anos 1950. Tinha um menino muito grande que batia em mim e em todos os demais meninos. Eu fiz o que tinha que ser feito: fui falar com meu pai, que me disse ‘eu não posso fazer nada. Você que tem que resolver isso na sua escola’. Diante disso, um dia, quando o menino grande bateu na minha cabeça, eu o chamei para brigar fora da escola e lá eu apanhei como um cachorro, levei uma surra muito grande. Novamente fui falar com meu pai, que me disse ‘eu não posso fazer nada, porém agora esse grandão já sabe que você é diferente dos demais porque você o enfrentou, mas você tem que resolver seus assuntos’. Foi quando eu tive a ideia de colocar esterco de cavalo dentro da mochila dele e também, junto com um grupo de amigos, tirar os parafusos da carteira dele. Assim sendo, quando ele colocou a mão dentro da mochila e se sujou e também caiu da carteira, ele ficou humilhado e desorientado. Diante disso, o que fiz foi injustificável, mas completamente explicável.

E como se resolve o bullying atualmente?
Há uns dois meses teve uma menina de uma escola de periferia chamada de Testuda. A história da Testuda foi resolvida por nós, da Coordenadoria da Infância, por um projeto chamado Justiça Restaurativa – para evitar que fiquem mandando para a justiça tradicional ou mesmo para internação na Fundação Casa. Existem muitas infrações de adolescentes com cunho ofensivo menor que podem ser resolvidas através desse projeto. Basicamente, era uma menina que era chamada de Testuda pelos amigos e um dia ela não aguentou e bateu em vários colegas da sala de aula. A primeira indicação do próprio colégio foi encaminhá-la para a justiça tradicional, por causa dos ferimentos que ela causou nos colegas de classe, mas um dos juízes da Justiça Restaurativa ficou sabendo, entrou no meio e fez uma audiência na Justiça Restaurativa, que foi juntar na mesma mesa a diretora do colégio, o juiz, os professores, o aluno ofensor, os alunos ofendidos, os pais desses alunos e tentar uma solução – e também ver a origem da violência e por que ela começou. Então veio à tona o que a diretoria da escola não sabia, que era a questão da menina ser chamada de Testuda.

E como ficou resolvido?
Chegou-se a uma grande composição: por mais humilde que fossem os pais da Testuda, eles iriam contribuir com os gastos dos ferimentos dos colegas de classe dela e, em acordo, ninguém mais iria chamá-la de Testuda. Então, diante disso a Justiça Restaurativa é uma coisa feita sob medida para resolver casos de bullying. Estamos fazendo um convênio com a Secretaria do Estado e também com a Secretaria Municipal de Educação para dar treinamento a professores e diretores, para que eles sejam treinados em audiências com a Justiça Restaurativa sem a presença do juiz.

Mas já existe alguma lei a respeito de bullying?
Tem uma lei no Rio Grande do Sul muito interessante, porque ela reforça a responsabilidade dos dirigentes das escolas, só que é uma lei que não fala de sanções, ela só fala que não pode – e se eu fizer, o que acontece? É uma lei imperfeita, mas é uma lei que veio para mostrar que o bullying não pode ser praticado. Agora, mesmo sem existir essa lei, a vítima de bullying tem todas as possibilidades de tentar contra a escola e é evidente que a escola vai querer responsabilizar também o adolescente e, como ele é menor, a responsabilidade acaba sendo dos pais do adolescente.

Agora as crianças não vão perder a espontaneidade?
Jamais, porque brincar é uma coisa e brincadeira de mau gosto é outra coisa. E é lógico que a gente pode brincar com o diferente do outro de forma a unir o engraçado sem ser ofensivo.

E como ficam os pais nessa situação?
Se eu tenho um filho e esse filho está crescendo, sou eu quem tem que ensinar para ele ser solidário, ter amigos, saber respeitar os diferentes, ou seja, ter educação familiar.

Quando os pais devem se preocupar se o filho reclama que estão zombando dele?
Os pais conhecem seus filhos melhor do que ninguém e sabem quando ele está sofrendo.

O bullying acontece mais em escolas particulares ou públicas?
Acontece em todos os locais: na pública, na particular, também em clubes, em comunidades. Hoje, as pessoas que não são solidárias ou as pessoas que não têm uma formação melhor acabam cometendo esse tipo de abuso.

De quem é a responsabilidade de um modo geral?
Eu acho que é de todo mundo, porém, cada caso é um caso, e tem que se verificar sempre quem causou, se a escola estava atenta e se puniu o professor – ele próprio deveria estar sabendo que a primeira coisa que ele, como professor, deve ensinar aos alunos, tanto ao lecionar matemática, ou geografia, ou história, é ser bom, ser justo, ser amigo das pessoas, ser verdadeiro.

Tem também o cyberbullying, nas redes sociais tipo Orkut, Facebook, com comunidades ofensivas. Isso tem controle?
Eu entendo que, se até a pedofilia está sendo controlada na internet, num trabalho formidável da Polícia Federal, por que não controlar também esse tipo de coisa? O cyberbullying é incrivelmente covarde, mas há possibilidade técnica sim de ser combatido.

Existem muitas comunidades do tipo “Eu odeio meu professor”. Como resolver isso?
Eu acho que as crianças têm que ser politizadas para quando chegarem numa determinada idade, terem um representante de classe, que vai coletar as assinaturas dos coleguinhas para falar por que não gostam do professor Fulano. ‘Nós não aceitamos porque ele faz gracejos com as meninas de sala de aula, não aceitamos porque ele é agressivo conosco, fala palavrões inclusive, não aceitamos o professor Fulano porque ele faz descriminação com o Pedrinho que é negro, ou com o Zezinho que é cadeirante… Politizar nossas crianças e adolescentes é importante.

O que se pode falar sobre o futuro em relação ao bullying?
Não podemos só olhar para um núcleo, temos que olhar para toda a humanidade. Quanto mais a gente olhar solidariamente para as pessoas a situação do bullying tende a melhorar, mas é evidente que vai sempre tem um lugarzinho do bullying no país.

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