Nos trilhos da Lapa

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A museóloga Maria Inês Dias Mazzoco

A Lapa tem muito a ver com a ferrovia. Muito do desenvolvimento do bairro aconteceu graças às oficinas de manutenção ferroviária que a Lapa tem e em torno dos trilhos, o bairro cresceu. Hoje, os trens continuam a cortar a região, mas deixaram no passado o de antigamente e se tornou um meio de transporte de massa. Para falar um pouco sobre a história da ferrovia e o bairro da Lapa, entrevistamos a museóloga Maria Inês Dias Mazzoco, uma apaixonada pelos trens desde a infância e que atualmente desenvolve um trabalho para a implantação do Museu Aberto da Ferrovia, que deverá ser inaugurado em 2010 no bairro da Mooca. Autora de com dois livros publicados, Cem Anos Luz e De Santos a Jundiaí: nos trilhos do café com a SPR, em parceria com Cecília Rodrigues dos Santos. Nossa conversa aconteceu no pátio das oficinas da MRS Logística, na Vila Anastácio, ao lado dos três vagões que foram restaurados e aguardam a hora de serem levados para o novo museu.

Sua história com os trens vem de família?
Meu bisavô espanhol veio trabalhar como maquinista de trem na São Paulo Railway Company, em Jundiaí. Meu bisavô português foi trabalhar em Paranapiacaba no sistema funicular. Minha família tem muito de ferrovia na história.

E quando a sua família chegou à Lapa?
Quando minha avó Virgínia ficou viúva veio para cá. Meu avô já havia dito para ela que aqui na Lapa os filhos teriam melhores condições para estudar e ter uma vida melhor. Meus pais se conheceram no teatro que a SPR tinha onde hoje existe o Nacional Atlético Clube. Meu pai é de família italiana, do Vêneto, e já estava na Lapa. O pai dele tinha uma participação numa padaria no Largo Tito.
 
E como surgiu seu interesse pelos trens?
Morei em vila ferroviária. Parte da minha infância vivi na ferrovia. Tenho boas lembranças dessa época. O lado lúdico das ferrovias quem me ensinou foi meu avô. Meu pai ensinou a respeitá-las. Nunca pensei em trabalhar com trens. Estudava biblioteconomia e trabalhava no Fórum. Uma amiga me incentivou a prestar concurso para a Rede Ferroviária Federal, passei e fui trabalhar no departamento jurídico da ferrovia e depois na engenharia.

O desenvolvimento da Lapa está muito ligado aos trens?
Totalmente ligado. As oficinas da Vila Anastácio fizeram a Lapa. A ferrovia Santos-Jundiaí (antiga São Paulo Railway Company) foi construída para escoar a produção de café. O traçado original era para ir até Campinas. Mas os ingleses perceberam que eles não precisariam construir nada até Campinas. Eles poderiam parar em Jundiaí e daí em diante cada um faria o seu trecho. E quem queria exportar para Santos teria de passar por aqui e pagar por isso. Os ingleses foram espertos.

Como a ferrovia se desenvolveu aqui na cidade, na Lapa e região?
A partir da construção da Estação da Luz em 1895, que foi erguida para ser uma estação de passagem e foi onde a cidade começou. Toda a construção foi trazida da Inglaterra e virou porta de entrada da cidade. William Speers, que era o administrador da ferrovia, percebeu que a cidade estava crescendo para o norte e para o sul. E a ferrovia não poderia truncar esse crescimento. E foi por isso que a Estação da Luz foi construída de passagem subterrânea como se fosse um metrô.

Por que os trens aqui foram sucateados ao contrário do que acontece em outros países?
O Brasil não faz a manutenção de seu patrimônio. Isso é um crime. Não é só com o trem. É com tudo. Somos imediatistas e nós não temos a tradição da preservação. Não tivemos educação para preservar. Os portugueses vieram para explorar.

Muitas estações ao longo da linha do trem viraram cidades…
Então, ao longo da ferrovia Santos-Jundiaí, localidades foram sendo formadas, as estações, elas tinham um objetivo. Por exemplo, na estação do Jaraguá, eles acreditavam que lá havia pedras preciosas. E não tinha nada. Cada localidade tem uma justificativa por que foi construída. Depois, essas paradas acabaram virando bairros e cidades ao longo da linha.

A Argentina tem uma malha ferroviária maior que a brasileira. Por quê?
Desativamos muitos trechos na década de 1980. O ministro Mario Andreazza (dos governos Costa e Silva e Médici) tinha interesse em desenvolver o transporte rodoviário por ser dono de uma grande empresa de transporte rodoviário.

Os trens modificaram os nossos hábitos?
Os ingleses atuaram muito nesse segmento e trouxeram novos costumes. A precisão do horário é um deles. O cheiro da cidade mudou com as locomotivas que circulavam. Os ingleses trouxeram seus costumes, como o chá das cinco, e nós adotamos esses hábitos na época.
 
Como a ferrovia virou uma paixão para você?
Quando fui trabalhar na RFFSA. Fui coordenadora da preservação em São Paulo. Montamos museus – em Paranapiacaba, em Jundiaí, na Estação da Luz. Fiz pós-graduação em museologia para poder mexer com isso e ter maior conhecimento técnico. Fui gerente de documentação da engenharia e montei um banco de dados com informações, mapas, desenhos e plantas da história da ferrovia. A privatização da ferrovia não contemplou o patrimônio histórico.
 
Quem comprou não precisava cuidar da história das ferrovias?
Não havia exigência de lei e ele não era obrigado a fazer nada. Na privatização das empresas energéticas teve essa obrigação.

O museu da ferrovia era para ser na Estação da Luz?
Em 1997 lancei o projeto “100 Anos Luz”, para restaurar a Estação da Luz e criar um museu lá. Tivemos parceiros importantes como a Editora Três aqui da Lapa. Em 1998, quando a RFFSA foi liquidada, o projeto quebrou. A Secretaria de Cultura aproveitou o projeto e, em 2000, lançou na Luz o Museu da Língua Portuguesa.

E a recuperação destes carros de passageiros, como aconteceu?
Quando o José Serra ainda era prefeito da cidade de São Paulo, eu o procurei. Eu estava muito preocupada com a documentação da RFFSA. Ele me apresentou à Secretaria de Cultura e começamos a trabalhar juntos. Quando o Serra foi eleito governador, uma das primeiras coisas que ele fez foi ligar para mim e pedir para ver os documentos e os carros. Ele foi até a Estação da Luz com o secretariado para conhecer o nosso trabalho. Para mim, foi uma surpresa. E disse que queria fazer o Museu.

Quando será inaugurado e onde?
Em 2010 e será nos galpões da Mooca.

Por que é importante um museu ferroviário?
O acervo da ferrovia conta a história dos transportes a partir das ferrovias e dela para outros meios de transportes, escoamento de mercadorias e de pessoas. E também conta a história da industrialização da cidade e do país., que começou aqui nas oficinas da Lapa.

Esses carros restaurados serão expostos no Museu?
Claro. Esses carros eram da administração da ferrovia. A MRS patrocinou o restauro deles através da Lei Rouanet. A partir de 1995, esses carros não eram mais utilizados mas tiveram manutenção. Os carros são 1909 (carro 1), 1913 (carro 7) e 1922 (carro-bar). O museu terá o patrimônio arquitetônico, documental, mapas, plantas, material rodante, equipamentos das estações.

Além dos carros, o que mais terá o museu?
Quando esses carros ficavam lá na Estação da Luz, eu contava a história deles e o público batia palmas. O museu terá uma área de documentação, uma área expositiva e uma área de oficina de restauro que vai funcionar dentro do museu. As oficinas da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), embora experiente, não conheciam estas normas de restauração que foram utilizadas nestes carros. Vamos qualificar mão de obra de restauro e pretendemos trabalhar com o Senai que começou dentro da ferrovia. Já conversamos com eles.

Você gosta de andar de trem?
Claro. Quando vou para Jaguariúna, às vezes desço a serra nas locomotivas. No exterior eu viajo muito de trem. Em Paranapiacaba tem uma locomotiva com meu nome e que está no museu. Ela é de 1867 e veio da Inglaterra.

O romantismo ainda tem lugar nos trens como antigamente?
A sociedade mudou. A locomotiva a vapor tem um significado importante. A fumaça leva ao lúdico, ao romantismo. Ela é imponente, desbravou regiões e tem uma carga emocional. Antigamente a locomotiva tinha glamour. Hoje, a nossa sociedade está muito rápida. E hoje o trem é um transporte de massa ou de carga. Na Europa ainda se preserva o glamour. Hoje, estamos tentando resgatar nossa história com os trens turísticos. A ABPF tem vários pelo país.

www.abpf.org.br
midmazzoco@uol.com.br

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