Lições de um jornalista

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Kelly Monteiro
Há mais de 20 anos trabalhando na Rede Globo, o jornalista José Roberto Burnier começou sua carreira quando ainda estava na faculdade. Sua estréia na emissora em São Paulo foi no Globo Rural, em 1986. De lá para cá, Burnier atuou em praticamente todos os programas jornalísticos da Globo, como SPTV, Bom Dia São Paulo, Bom Dia Brasil e Jornal Nacional, onde foi repórter, editor, mediador de debates e âncora de telejornal, até chegar a ser correspondente interna- cional. Trabalhando na Argentina, foi um dos pioneiros a utilizar o “Clip Net Client”, um software para transmissão de reportagens via internet, sem a necessidade de satélite.
Entre tantas reportagens, o jornalista cobriu casos como o de Marcos Willians Herbas Camacho, mais conhecido por Marcola, o chefão do autoproclamado Primeiro Comando da Capital (PCC), e o julgamento de Suzane Richthofen e irmãos Cravinhos, condenados pelo assassinato de Manfred e Marísia von Richthofen.
José Roberto Burnier recebeu o Guia Daqui, em sua casa, no Alto da Lapa, para esta entrevista.
Você foi um dos pioneiros na implantação da transmissão de reportagens via internet. Como foi assumir essa responsabilidade?
Na verdade fomos três os primeiros que saíram com este equipamento embaixo do braço: eu, o (Marcos) Losekann, em Jerusalém, e o Caco (Barcellos), em Paris. Foi tudo muito intenso na Argentina porque estava em outro país, com outra cultura, um idioma parecido com o nosso, mas que não tem nada a ver. Cheguei lá com uma mala na mão e o computador na outra. Comecei do zero tanto a minha vida pessoal como a profissional. Era a primeira vez que usávamos o ‘Clip Net Client’, um software que a Globo desenvolveu e que comprime todo o arquivo de áudio e vídeo e envia pela internet: eu ia para a rua, gravava as imagens, as passagens, standaps… Carregava câmera, tripé, microfone, montava tudo na rua e gravava sozinho. Depois descarregava no computador e mandava os arquivos pré-editados para São Paulo ou para o Rio.
Era um trabalho complexo, mas tinha um lado aventureiro…
Totalmente. No início cheguei a ficar sete horas no telefone, sem tira-lo da orelha, porque estava precisando transmitir uma matéria importante e não acontecia nada. Teve dias de quase jogar tudo pela janela realmente! Estava sozinho, tinha que me virar. Viajei pela América Latina toda e tinha que arrumar tudo. Foi pesado, mas aprendi a me virar.
Em que o jornalismo, ou os jornalistas,tem pecado atualmente?
O jornalismo, principalmente o de televisão, avançou nos últimos anos. A Globo avançou, ficou mais independente. Ela era vista como chapa branca, ligada ao governo por causa da Ditadura, período difícil para todo mundo, mas ficou mais independente e contundente. Há críticas, o que é normal. Estamos aí para sermos avaliados; não somos donos da verdade. Houve erros inclusive na recente campanha eleitoral, que foi explorada de uma maneira barulhenta demais pela imprensa. Porém, devemos ver onde houve equívocos e tirar lições. Na tevê também houve um tipo de jornalismo que a mim não agrada. Um jornalismo sensacionalista, exagerado, onde se compra o que se vende no primeiro instante e comete-se muitos erros. Chegaram a fabricar fatos, e isso já não é mais jornalismo. Jornalismo é cobrir o que acontece, o que as pessoas falam e não ficar inventando fatos. O que falta no jornalismo é auto-avaliação mais criteriosa e vou sempre defender a necessidade de investigar cada vez mais antes de sair por aí falando ou acusando indevidamente.
Isso ficou evidente nas Eleições de 2006?
Pude ver isso de perto nas eleições sim, essa falta de auto-avaliação. A imprensa se fecha muito nas determinações dos veículos de comunicação, adota como regra e arruma argumentos para responder a qualquer crítica. Argumentos adaptados à ideologia seguida pelo jornal, rádio ou televisão. Vi isso na campanha eleitoral, que cobri com muita intensidade. Vi erros cometidos por veículos grandes, inclusive a Globo. Os erros mais grosseiros vi nos jornais. Eu vi uma ‘mão de gato’ pesada querendo mesmo prejudicar um dos candidatos. E acho que isso está errado. Os jornais americanos já mostraram que eles escolhem presidentes e candidatos. Mas não deixam de cobrir, de forma imparcial, a campanha eleitoral. Uma coisa é você escrever um editorial a favor de um candidato, outra coisa é você fazer do editorial uma campanha do jornal. E a imprensa brasileira cobriu a eleição passada com muita parcialidade. Eu estava cobrindo as mesmas coisas e via como estavam turbinando títulos, manchetes, notícias antigas. Deixaram de ouvir o outro lado, de investigar mais antes de publicar matérias.
Você acredita que a falta de investigação se deve à internet, ou seja, as notícias estão na rede e apenas ela é usada como fonte?
Acho que o advento da internet é novo no jornalismo no mundo inteiro. É importante não só porque abre o mercado, mas porque se tem uma notícia mais instantânea. Mas é preciso ter cuidado com o que se lê na internet. Muitas vezes a notícia vai sendo modificada e no final não é nada daquilo. É preciso checar muito. A internet está aí para ser usada mesmo, é um meio instantâneo de informação. Pelo menos para mim a internet funciona como um alerta.
Como avalia o próximo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
O presidente Lula teve uma outra chance para poder fazer o que não fez no primeiro mandato, principalmente na área social. Campanha é uma coisa, governar é outra muito distinta. Ele sabe disso porque quando fez campanha, em 2002, falou muita coisa que não conseguiria fazer mesmo. Embora tenha feito programas que estão tirando da miséria uma parcela enorme de brasileiros. Tem problema de controle? Sim. O Brasil é um país continental. Ao sobrevoar a Amazônia se vê que é impossível fiscalizar aquilo. Mas é claro que é preciso criar mecanismos para fortalecer e intensificar a polícia de fronteira. Vejo o próximo mandato de forma positiva para a área social. O Lula foi o único presidente, desde 1960, que conseguiu fazer com que o Brasil tivesse um período de redução de concentração de renda. Isso aconteceu em outubro de 2005, pela primeira vez em 45 anos. Para mim, esta é a grande notícia. E o argumento definitivo é que ele, de fato, entre todos os candidatos que estavam aí, é o que tinha e tem o maior comprometimento com a diminuição da pobreza, a maior vergonha do Brasil. O governo Lula reduziu a pobreza em 19% em 2005. Este é um número para ser comemorado. Embora os veículos de comunicação não dêem tanto destaque a isso, tem que ser levado em consideração sim. Fosse quem fosse que tivesse feito isso tinha que ser levado em consideração porque a gente não pode ficar convivendo com essa miséria enorme que há no Brasil. E tudo indica que ele vai continuar neste caminho, com forte controle monetário, da inflação; vai procurar baixar as taxas de juros e desburocratizar o País. Além disso, acho que é preciso se fazer uma grande reflexão sobre a campanha eleitoral. Elas precisam ser mais próximas da realidade. Ficam vendendo um Brasil que nunca vai existir.
Ao cobrir casos como os de Marcola, Suzane e irmãos Cravinhos, o que mais te marcou?
Todos estes casos são marcantes por vários aspectos. A Suzane pela brutalidade do crime e por essa coisa quase que teatral dos advogados de defesa de criarem peças para defender o seu cliente. É legítimo, está na constituição, eles têm direito de fazer a defesa como bem entenderem, mas acho que tem gente extrapolando. O que se viu no caso da Suzane foi uma farsa montada e o Fantástico descobriu. Não tem outra punição melhor do que a deles: 19 anos e oito meses por cada crime. Esta pena foi inteligente porque não dá para recorrer. Embora no Brasil ainda tenha muita condescendência com quem comete esses crimes. O sujeito é condenado a uma pena dessas, mas tem tantos benefícios que acaba ficando muito menos tempo retido do que deveria ficar. No caso do Marcola, ele é muito inteligente. Ao se ler o manifesto do PCC nós, que somos jornalistas e que cobrimos isso, sabemos que metade do que está escrito ali é verdade. Ele joga com questões como abusos cometidos com presos, desde os locais onde são colocados, até a situação em que ficam na prisão, da privação de liberdade e de uma série de benefícios que demoram a ser concedidos a eles; gente que era para estar em regime semi-aberto e que até hoje está trancado. Imagina a revolta que isso não dá? Cadeia é cadeia, mas pocilga, masmorra e solitária são outras coisas. Graças a Deus, os governos aqui de São Paulo conseguiram acabar com as cadeias nos distritos policiais. Eu fiz muita matéria em distrito policial e é uma coisa de embrulhar o estômago. A crueldade, o número de pessoas em um espaço minúsculo, é uma coisa impressionante. Ou seja, o Marcola, entre outros, sabem que terão eco. Gozam de uma certa simpatia por parte da imprensa porque parte do que eles dizem é verdade. Agora, também sabemos que eles são cruéis, que os crimes que cometeram, como seqüestros com tortura, são uma estupidez terrível. Não faço defesa. Criminoso tem que pagar. O Marcola está na cadeia porque é uma pessoa perigosa, inteligente, organiza rebeliões, e tal. Embora ele negue veementemente. E a nossa função é dar vazão a isso, fazer com que a sociedade entenda, e mais, fazer com que a sociedade desfaça isso.
De que maneira?
A sociedade precisa sair da função passiva de ficar só lendo jornal e achar que não é com ela, e participar mais. O brasileiro ainda tem uma participação ridícula nas tomadas de decisão. Se uma pessoa é assassinada brutalmente na rua, quem passa vai embora como se tivesse comprado um pão na padaria e acabou. A sociedade brasileira se acostumou com os atos de violência e não podemos achar que isso é normal. E a imprensa tem a função de chocar mesmo para haver uma reação. Não adianta só dizer que o governo não faz nada. E é preciso haver mais solidariedade. São Paulo é uma cidade cruel, de gente individualista, que só pensa em si. Há muita falta de solidariedade.
Você morou na Vila Madalena e agora está no Alto da Lapa. Como analisa o crescimento da região?
O Alto da Lapa é muito interessante. Na década de 1960, era o grande bairro de São Paulo, de classe alta. Depois, na década de 1980, houve uma degradação do bairro, começaram os assaltos, as pessoas foram saindo daqui. Muitas famílias não conseguiram manter seu poder aquisitivo. O bairro foi minguando. E o que eu vejo agora é que está havendo um despertar pelo Alto da Lapa. Eu torço para que o zoneamento não arrase o Alto da Lapa, Vila Leopoldina, City Lapa, que ainda preservam áreas restritas para residências. Isso para mim é o fim da picada, descaracteriza o bairro. Esta é uma região tradicional, de pessoas do bem, um bairro gostoso onde há muito verde.

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