Na luta por um ideal

0
1518

Lena Wild, 50 anos, é uma artista versátil. O teatro, a dança, a música, o cinema, as artes-plásticas e a disposição para alcançar seus ideais… Todas estas formas de expressão fazem parte do currículo da amazonense, radicada em São Paulo há mais de 30 anos. Descendente dos índios Mandurucus e Muras, Lena descobriu a veia artística aos 14 anos de idade. Desde então, luta por “um teatro que una estética, ética, cultura e cidadania” e por uma política cultural inclusiva.
Sua estréia nos palcos foi na peça “As Trompas do Apocalipse”, com o Grupo de Teatro do Sesc – Amazonas. Já na capital paulista, participou da Companhia de Teatro Vento Forte. As pesquisas sobre a cultura amazonense a levaram a apresentar “O Conto na Cuia”, no Festival de Teatro da Cena Lusófana, em Portugal. Como encenadora, Lena dirigiu o concerto de música erudita “Paulistânia” e a peça “O Operário em Construção” (Vinícius de Moraes). Além do teatro e da música, a atriz participou de projetos na área de vídeo e cinema, como o curta de Alain Fresnot, “Amor que Fica”, premiado no Festival de Gramado.
Lena dirige “Urdindo Manuel, Tecendo Bandeira – quando o cotidiano é o tesouro…”, encenado por 20 integrantes da Oficina de Artes Integradas, no Centro Cultural Tendal da Lapa. O espetáculo, conclusão de cinco anos de trabalho com o mesmo grupo, fica em cartaz até 1º de julho. Questionada sobre a continuidade da Oficina, Lena se comove: “Sobre isso é bem difícil falar”. Ela explica as razões.
Foi pela arte que você deixou seu estado natal e veio para São Paulo. O que mais te estimulou?
Na época, se fazia muito teatro europeu, à moda italiana, com o palco lá e o público aqui. E eu, quando comecei a me interessar por teatro, não sabia bem se queria ser atriz. Memorizar texto, passar para o público, era pouco para mim, tinha facilidade. Eu queria descobrir de que maneira o meu trabalho iria influenciar a vida das pessoas. Comecei a pesquisar até que descobri o livro “Em busca de um teatro pobre”, do (Jerzy) Grotowski. E, ao ler Grotowski, encontrei respostas para as minhas angústias. Tenho muito dessa coisa de tribo, de ritual… E, quando comecei a fazer teatro, tinha que fazer uma cena e apresentar, mas eu já usava elementos diferentes, como colocar uma pessoa na platéia para participar. Eu tinha 19 anos e queria encontrar uma resposta justamente porque queria me relacionar mais com as pessoas. Incomodava-me muito essa coisa elitista de dizer que teatro é só para quem pode. Para mim, teatro é para qualquer um, qualquer povo tem o seu teatro. Foi quando decidi vir para São Paulo, porque a minha terra não podia me oferecer mais. Precisava de novas trocas e informações. Até eu me estabilizar aqui foi muito sofrimento, mas não fiquei parada. Fiz aulas de dança no Ballet Stagium com a Geralda Bezerra, durante oito anos; estudei canto lírico e popular, piano e sempre trabalhei muito com as mãos fazendo artes plásticas.
Qual o resultado desta mistura de várias artes na sua formação?
Eu não acredito em separação entre as artes, porque isso as empobrece. Temos que aprender a compor. O ser humano nasce com essa totalidade. A sociedade é que vai desmembrando a pessoa até ela ficar quase nada para que a sociedade possa manipulá-la melhor. E essa integração me mostrou que somos artistas totais em potencial. Porém, depois de um tempo aqui em São Paulo, percebi que não ia ter espaço. A princípio, as pessoas gostaram de mim porque eu tinha uma cara bem selvagem. A diferença, naquela época, te dava certo espaço. Hoje, ser diferente depõe contra você. As pessoas estão mais preconceituosas. Mas mesmo sendo diferente, participei de filmes, grupos de teatro e estudava. Mas ainda sentia que precisava criar uma linguagem que realmente fosse teatro brasileiro. Foi quando retomei o que havia começado lá no Amazonas. Até que descobri o Tendal, um lugar que não tinha nenhum investimento. Fiz um projeto para a Secretaria da Cultura e ela aceitou. Dei aulas aqui e em oficinas do Estado. O Tendal ainda não tinha essa estrutura; dispensava os alunos porque as salas eram muito pequenas. E hoje conquistamos este espaço.
Como funciona a Oficina?
É uma mistura de teatro, canto, dança e expressão plástica. Ensino as técnicas, mas cada pessoa tem espaço para demonstrar suas experiências. Neste grupo, com o qual trabalho há cinco anos, há gente de todas as idades: universitários e pessoas que ainda não terminaram o primeiro grau; empregadas domésticas e crianças. Trabalhamos com composição, ‘tijolo, por tijolo, num desenho lógico’, como fala Chico Buarque. Composição é lidar com formas e tamanhos diferentes. Esses aprendizes, não os chamo de alunos, foram incentivados a fazer poesia, aprenderam a diferença entre um rap e a música clássica, sendo que a única diferença é o modo como se escreve porque tudo é música. E não adianta dizer que é música pobre ou música rica, porque isso é uma visão burguesa para que as pessoas não tenham auto-estima com aquilo que fazem. Hoje, estou com vontade de ouvir rap. Amanhã posso querer ouvir Mendelsson. Ouço e há espaço para isso. Com a diferença que o rap que eu estou ouvindo aqui em São Paulo tem muito mais a ver com o que eu vivo. Outro diferencial da Oficina é que trabalhamos com o que temos. Por exemplo, os próprios aprendizes foram até a rua José Paulino em busca de papelão para construir os cenários. Eu lido com o modo de vida de cada um, com aquilo que as pessoas me trazem, pois não gosto de linearidade. Se uma pessoa está em um nível de aprendizagem e a outra está em outro, é porque o caminho de um foi mais longo do que o do outro, ou que aquele teve mais acesso. Não significa que um seja melhor ou pior. É triste nivelar as pessoas. Você pode saber sobre filosofia européia. Mas eu posso saber sobre filosofia indígena da qual você não sabe nada. Entende? E isso é tudo muito relativo. E o principal é que eles não aceitam tudo que eu digo. Estimulo que me questionem com o conhecimento que têm.
E Manuel Bandeira, como entrou na história?
Porque ele trata do cotidiano com um olhar artístico. Ele sentava num bar e ficava olhando as pessoas passarem e a partir disso compunha coisas maravilhosas. Bandeira trabalha ritmo, o que é fundamental na poesia, trabalha com a métrica orgânica, sempre quebrando a métrica clássica. E Manuel Bandeira foi rechaçado no Teatro Municipal com o poema do sapo. Isso me chamou a atenção nesse cara, comecei a estudá-lo. E criamos um espetáculo que sai das paredes do teatro. A maioria dos aprendizes não conseguia articular pensamento quando chegou aqui. Um deles, por exemplo, faz faculdade e era muito tímido. Ele toca violão e nunca havia cantado na frente da família por timidez. Ninguém imaginava que ele fosse capaz de fazer o que faz no espetáculo. Também tem uma menina, com dez anos, que está comigo desde os sete. Ela não abria a boca e hoje está em cena. Fala duas frases, mas fala. Outra história é de uma senhora que sofreu um derrame e a mão dela tremia muito. Ela não conseguia memorizar o texto e escrevemos o texto na mão que tremia. E ela entrou em cena, lendo o texto na mão, dando a impressão de que aquilo fazia parte do personagem.
É o último mês do espetáculo em cartaz. Você diz que é difícil falar sobre este assunto. Por quê?
Porque o subprefeito da Lapa (Paulo Bressan) é uma pessoa que não gosta de arte, não gosta de cultura. E ele passou por cima de 18 anos de história do Tendal da Lapa. Aqui havia prostitutas e drogados, o prédio estava abandonado e ninguém dava a menor bola. Os artistas, como fazem os peixes quando o navio afunda, tomaram conta do local. Quando cheguei aqui, tinha isso de pó (mostra a altura com a mão). Parecia a lua. Tinha que andar devagar porque se fosse rápido o pó subia e não dava para respirar. Conseguimos que as prostitutas e os drogados fossem embora sem briga, com a ajuda da própria Guarda Municipal. Lutamos! E na hora em que o navio afundado está cheio de corais, colorido e bonito, vem alguém e quer se apropriar porque acha que é funcionário público e que pode. E eles ignoram a gente. Eu não parei de dar aulas. Fizemos a última apresentação deste espetáculo em dezembro e em janeiro retomamos os trabalhos. Estou desde janeiro sem receber nenhum tostão! Ainda bem que sou uma artista plástica, meu ateliê fica na minha casa, em Perdizes, e é deste trabalho que tiro o sustento da minha família. Mas não vou abrir mão do grupo que participa da oficina aqui no Tendal porque ensinei a eles o que é cultura. Não é por causa de dinheiro que alguém vai fazer com que eu interrompa um processo que deu tanta auto-estima para essas pessoas. Nunca um coordenador de cultura veio aqui assistir a um espetáculo.
Por que o Tendal não participou da Virada Cultural, promovida pela Prefeitura?
Porque todo o material de inscrição foi mandado para a Cooperativa Paulista de Teatro e só os artistas que fazem parte da cooperativa, ou os indicados por eles, é que participaram da Virada. Nós estávamos aqui, com um espetáculo lindíssimo, e não entramos na programação, ninguém nos avisou. Isso é corporativismo puro. Eu não participo da Cooperativa porque não posso pagar o que eles cobram. Custava, não sei se ainda é o mesmo valor, 36 reais por mês¹, e com 36 reais se faz compra em supermercado para a semana. Não posso abrir mão disso. E a ‘burguesada’ diz que 36 reais não é nada! Não é nada para quem ganha muito dinheiro. E eles sabem que se quiserem fechar O Tendal para abrir Poupatempo terão um trabalho enorme porque nós seremos pacíficos, mas passivos jamais. Lutaremos, porque este espaço é o resultado de muito trabalho.
Quer dizer que a Oficina vai continuar?
Sim, o trabalho com este grupo continua. Para tudo é preciso muita criatividade. Não tenho dinheiro, não tenho nada, mas é o que digo: não é isso que vai nos impedir de fazer arte. É um direito e dever nosso, como cidadãos, praticar arte. Já temos quase duzentas pessoas pré-inscritas para a Oficina, mas não posso absorver turmas novas porque preciso ganhar dinheiro para o sustento da minha família. Só posso abrir mão disso se for remunerada. Se eles me pagassem, daria aulas de manhã até a noite aqui no Tendal. Eu abriria mão do meu próprio trabalho porque as pessoas são mais importantes. Só teremos um Brasil em pé de igualdade com todos os outros países quando formos um País cidadão, onde as pessoas são respeitadas quanto aos seus direitos e não tenham só deveres e obrigações. Acho um absurdo ter tantas pessoas inscritas para um curso, que é gratuito, e não realizá-lo. E, no entanto, se investe milhões em Virada Cultural. Isso mostra que, realmente, não existe um projeto de política cultural verdadeiro. É igual a político dar camiseta e dentadura para o povo: ilude e está tudo bem.

Sobre o espetáculo

“Urdindo Manuel…” é um trabalho que propõe, compõe e que cria trajetórias. Usa a cultura popular para cantar e contar histórias de modo lúdico, incitando o imaginário. Não há linearidade, o espectador compõe sua história partindo da audição, do tato, do paladar, do olfato e da visão. A peça decompõe Bandeira atingindo algo próprio, tendo como coordenada o pensamento do poeta e o “modus vivendi” dos componentes.
Da plasticidade corporal à cênica, tudo vem acompanhado de um pensamento filosófico que leva em conta homem/natureza, artista/cidadão, transformando “lixo em luxo”.
As danças e cantos vêm do Norte e Nordeste, como o Quatipuru, oriunda do Amazonas, e a Ciranda, tradição nordestina.

“Urdindo Manuel, Tecendo Bandeira – quando o cotidiano é o tesouro…”
Até 1º de julho. Sábados e domingos, às 17h. Entrada franca. Censura livre.
Espaço Cultural Tendal da Lapa. Rua Constança, 72, Lapa. Telefone 3862-1837.

COMPARTILHE
Próximo artigoGente 296

SEM COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA