Atrás de toda criança adotada existe uma história comovente, muitas vezes de dor e de puro descaso. São dramas reais medidos em números: 80 mil meninos e meninas à espera de uma família de verdade, segundo dados da Associação dos Magistrados Brasileiros, que lançou a cartilha Adoção Passo a Passo – Mude um Destino, explicando de maneira clara e objetiva a adoção. Não nos cabe julgar o que leva uma pessoa a se desfazer de um ser humano. Mas é possível entender porque situações de maus tratos, abusos sexuais e abandono geram um número tão alto de crianças em abrigos, à espera de uma família substituta.
Dr. Fermino Magnani Filho, juiz da Vara de Infância e Juventude do Foro Regional IV Lapa, orienta e decide a vida de muitos menores. Ele tem cerca de 2.500 processos em andamento atualmente na Zona Oeste e conta com uma equipe técnica de assistentes sociais e psicólogos para auxiliá-lo.
Como funciona a Vara da Infância e Juventude em relação à adoção?
Nosso trabalho não é fazer adoção. Adoção é a ponta final de uma corda que preferencialmente não deveria acontecer. Nosso trabalho é atender situações de risco envolvendo crianças e adolescentes. É nossa função identificar o risco, mesmo que não seja risco físico, trabalhar a família, suprimir o risco e tentar as medidas que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite, como encaminhamento e acompanhamento à escola, terapia, tanto em relação à criança como aos pais ou responsáveis.
Que riscos são esses?
O conceito de risco é amplo e pode ser maus tratos, evasão escolar, violência doméstica, abuso sexual. Bastante comuns são aqueles casos em que o pai e mãe não estão presentes, por algum motivo: foi viajar, trabalhar longe e deixou a criança com a avó, por exemplo. Juridicamente isso é uma situação de risco. O responsável legal pela criança ou adolescente é o pai ou a mãe, que detém o direito de poder familiar. Qualquer outra pessoa – avô, primo, tio, irmão – necessita de uma autorização judicial, chamada guarda, para poder ficar com essa criança. Um exemplo típico são os dekasse guis, que vão para o Japão trabalhar e deixam os filhos aqui. A mãe deixar o filho com a avó para trabalhar não é situação de risco.
Quando a criança ou adolescente vai para adoção?
Em duas situações: por bem ou por mal. Por bem, a mãe chega aqui, geralmente com o filho recém-nascido, e fala: ‘ó seu juiz, tá aqui a criança, eu não quero, põe pra adoção’. Ou por mal, que corresponde a 99,9% das adoções feitas. São aquelas situações em que há efetivamente um risco físico, uma agressão, um abuso, uma negligência familiar grave, que nós identificamos e tentamos suprimir. Sempre tentamos buscar alternativas familiares: deixar a criança com a avó, a prima, a madrinha, alguém que tenha uma relação afetiva com essa criança e que possa garantir sua segurança. Quando você tenta de tudo e não consegue, aí vai para adoção. É o momento que o promotor de justiça entra com um processo contra os pais, geralmente contra a mãe, porque o pai é quase sempre desconhecido. É uma ação de destituição de direitos de poder familiar, o que antigamente se chamava pátrio poder. Nesse caso, os pais perdem os direitos sobre a criança e é feita uma anotação na certidão de nascimento da criança dizendo que os pais não podem mais dar palpite na vida dela: eles foram destituídos. Aí a criança é disponibilizada para adoção.
Como adotar?
Quem quer adotar tem que procurar um Fórum, fazer um cadastro e dizer o tipo de criança que quer. Em geral, brasileiros só querem crianças brancas, recém-nascidas, sobretudo do sexo feminino. Até um ano de idade o brasileiro aceita. Nas adoções internacionais, nós já conseguimos lares para grupos de irmãos, mas mesmo aqui a questão etária bate. Quando a criança atinge 6/7 anos de idade, pode encontrar dificuldade para ser adotada; com 8/9 anos as dificuldades aumentam e aos 10/11 é quase impossível – e muitas vezes não é por causa da disposição da família, mas pela legislação do país adotante.
Se o pai geralmente não existe, quem são essas mulheres que dão os filhos?
Essa é uma resposta delicada. Eu poderia dizer que, em geral, são mulheres da periferia, da pobreza. Quando comparado a outros países, inclusive de primeiro mundo, vê-se que essas mulheres são as mesmas; a pobreza não é o fator predominante para a negligência. A lei é muito clara quando diz que não se tira uma criança de uma família por causa da carência de recursos materiais. O que digo é que a pobreza não é por si só um fator de risco. Se não tiramos crianças da classe média é porque as denúncias não chegam aqui. Eu sempre digo que a diferença de classes sociais no Brasil pode ser identificada pela grossura das paredes.
Como assim?
Na pobreza as casas têm paredes de tapume, alumínio, papelão. Tudo que acontece na favela vaza: alguém ouve o grito, alguém vê os maus tratos e manda uma notícia anônima para cá. Se a criança é levada para uma rede pública de saúde, sempre haverá um assistente social que fará um relatório e nos mandará, dizendo que atenderam uma criança com características típicas de espancamento, por exemplo. Ou a criança será atendida numa escola pública e é obrigação do educador ou do dirigente escolar comunicar sobre situações envolvendo maus tratos.
E na classe média?
Todo mundo mora em prédio, a parede é mais grossa, você não conhece o vizinho e se conhece, ninguém vê nada. A lei do silêncio é mais rigorosa que numa favela. A criança será atendida numa rede particular de ensino, até encontrará um orientador bem-intencionado na escola, mas que não irá comunicar nem ao Conselho Tutelar nem à Vara de Infância sobre a situação daquele aluno. Se for para a rede de saúde, será um consultório particular. A Sociedade de Pediatria de São Paulo, que mensalmente estuda as situações de vitimização da infância e juventude, mostra que os números de incidência de abuso sexual são rigorosamente iguais no Canadá, Bélgica, México, Ásia, Oriente Médio. Por isso não se pode dizer que vitimização e maus tratos decorrem só da pobreza. Estou aqui na Lapa há 13 anos e a conclusão que chego é que a maioria dos casos são clínicos, não sociais. Se conseguissemos uma casa boa, emprego, plano de saúde e escola para uma família vitimizadora, no dia seguinte eles voltariam aqui com o mesmo problema.
Depois de esgotados todos os recursos, quanto tempo demora até chegar a adoção?
Esse é um ponto importante. O conceito de tempo aqui na Vara de Infância deve ser focado na criança e não no processo. Atrás de cada pasta de papel tem gente, só que a criança tem fases muito específicas do seu desenvolvimento, sobretudo no desenvolvimento emocional. Se eu receber a comunicação de que foi achado um recém-nascido, depois de todos os trâmites burocráticos (exames de saúde, procura por notícias de seqüestro ou subtração de incapazes), ele vai para um abrigo e em 40/60 dias, no máximo, essa criança estará numa família adotiva. Mas há situações de dependência química (drogas, álcool), que mandamos o pai ou a mãe fazer um tratamento, enquanto tentamos manter a criança com a família. Mas qualquer dependente só terá êxito se ficar um ou dois anos sem recaída e a criança não pode ficar esperando. Há momentos em que a gente precisa decidir – eu não tenho o direito de comprometer a existência dessa criança esperando o pai ficar bom. Trabalhamos com a percepção do caso; as certezas, na área de infância, não existem. O pensamento é que etapas decisivas da infância serão queimadas. Se eu pegar uma criança com 5/6 anos, sei que não posso esperar um ano para resolver a situação dela; se for com 10, não posso esperar nem seis meses. O tempo ganha outra dimensão.
É difícil tomar decisões?
Nunca me arrependo das decisões que tomei, mas sim das decisões que eu não tomei, nos casos de crianças que poderiam ter sido retiradas da família e não foram; ou das que foram retiradas e ficaram com parentes e voltaram depois de dois ou três anos em situação precária, quando, talvez, elas tivessem melhor chance numa adoção. Na dúvida, eu sempre resolvo a favor da criança.