Tinoco da Lapa

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João Salvador Perez e José Perez formaram a dupla mais representativa da música caipira de raiz: Tonico e Tinoco. Nascidos no interior paulista, em uma cidadezinha chamada Pratânia, vieram para a capital com o objetivo de trabalhar. “Foi por isso que a gente veio”, relembra Tinoco, hoje com 85 anos de idade e 70 de carreira – destes, 60 sempre ao lado de Tonico.
As canções que se tornaram sucessos em bailes, quermesses, festas de todos os tipos e em todos os cantos do País, permanecem até hoje na memória dos brasileiros. “Chico Mineiro”, “Baile na Roça” e “Tristeza do Jeca”, por exemplo, demonstram o que os compositores mais gostavam de cantar: a simplicidade do homem sertanejo, do homem do campo, e as histórias de vida que presenciavam em suas andanças pelo Brasil afora.
É por isso que para comemorar estes anos de carreira e sucesso, Tinoco irá lançar o CD “Tinoco do Brasil – 70 anos” com um grande show no 7º Arraiá da Lapa, no dia 9 de julho, às 20h, no Centro Esportivo Edson Arantes do Nascimento (Pelezão).
Tinoco e sua esposa Nadir, com quem está casado há 54 anos, receberam a reportagem do Guia Daqui Lapa em sua casa, na Moóca. Ele relembrou os momentos com o irmão Tonico e a sua mocidade passada, em grande parte, na Lapa.

Quando vocês saíram do interior e vieram para São Paulo pensavam em ser cantores?
Morávamos em uma cidade na região de Botucatu chamada Pratânia. Eu nasci em Pratânia e o Tonico nasceu em uma fazenda. Pratânia, há 80 e tantos anos, era Prata de Botucatu, um arraialzinho. Eu nasci numa fazenda de lá. Meu pai era podador de pé de café, todo ano tem que podar. Então, a cada ano tínhamos que morar em uma fazenda.

E foi ainda no interior que descobriram o dom de compor e tocar viola…
Compor, tocar, cantar sem ninguém ensinar. É uma coisa de Deus. A dupla Tonico e Tinoco foi enviada por Deus e nossa obra está no mundo inteiro. Temos músicas tocadas até no Japão, que é longe de tudo. Inclusive, meu filho fez um site pra mim e já veio mensagem lá no Japão. Porém, quem mais curte Tonico e Tinoco é a Alemanha. Os alemães gostam muito da cultura de outros países.

O que o senhor considera o ponto alto da carreira de Tonico e Tinoco?
O ponto alto foi quando, na década de 1940, nós entramos na Rádio Difusora aqui no Sumaré e depois na Tupi. Nós gravamos várias músicas, mas quando gravamos Chico Mineiro, pegou. E Chico Mineiro é cantada no mundo inteiro, em várias línguas. Desde 1940 Tonico e Tinoco foi uma novidade. Viajamos de ponta a ponta em todo Brasil durante 60 anos. Em cada viagem, indo e voltando, trabalhando, víamos temas de vida, temas bonitos e fazíamos moda de viola. Por isso temos mais de 1500 músicas gravadas em 60 anos e muitas composições nossas foram feitas na estrada. Sem querer criamos um estilo de letras por causa disso.

Por todas as histórias que vivenciaram…
É, porque o escritor tem que ficar retirado, na cachoeira bonita, para criar. Nós não. A inspiração é a vida. Nossas músicas todas têm uma mensagem boa. Eu nem sabia que tinha compositores no Brasil, porque viemos lá do mato e não deu tempo de aprender tudo. Aprendemos trabalhando.

Chico Mineiro foi baseada em uma dessas histórias?
Sim. Eram dois irmãos de Minas Gerais que foram cada um para um lado. Um foi para Goiás e o Chico Mineiro ficou em Minas. Um tempo depois ele foi para Goiás e contratou um dono de uma tropa de bois que era o irmão dele e ele não sabia. Eles cantavam juntos, eram amigos… Ouro Fino era um arraial, uma fazenda, e Goiás Velho era a capital. Nessas idas de um lado para o outro eles faziam festas, cantavam, dançavam, e numa dessas mataram o Chico Mineiro de inveja porque ele era muito amigo do patrão.

É o maior sucesso da dupla, assim como “Moreninha Linda” e “Baile na Roça”?
Sim, todas elas e tem também “Tristeza do Jeca”; não dá nem pra contar. Cada pessoa gosta de uma música diefrente, então aconteceu de Tonico e Tinoco, sem querer, colocar uma música em cada coração de um brasileiro e ninguém tira.

Para o senhor, qual a diferença da música sertaneja e da música caipira de raiz?
A música sertaneja não existe. Existe o sertanejo que trabalha no campo, na lavoura, é a matéria-prima da música caipira de raiz. Música raiz conta ‘causos’. Vai buscar a vida do interior. Então não existe música sertaneja, mas sim a matéria-prima da música raiz, que é o sertanejo que tem a vida dele. Eu vejo que a mídia da música sertaneja não é boa. Fui muito convidado mas nunca quis entrar nessa mídia, porque o palco é dele, do dono da dupla, do cantor ou cantora; palco, luz, som, etc. E cada coisa ele põe em nome de alguém da família dele, então ganha mais do que o artista. É tudo pago, eles pagam para ir à televisão. E quando não tem mais retorno, eles param e a dupla ou o cantor pára também. Aquela “éguinha pocotó” é um vexame. Entrou na mídia e ganhou dinheiro.

E vocês preferiram ficar à margem da mídia?
Sim, mais família. Na década de 1940, 50, não tinha trabalho em São Paulo e nem no Rio. Todos os cantores da época, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, vinham para São Paulo para cantar na noite. À noite eles almoçavam e jantavam, não ganhavam nada. E eu descobri porque quando eu entrei foi perguntando quanto a gente ganharia. Falaram que para ganhar algum dinheiro tínhamos que trabalhar em boate. Pensei que fosse uma casa de religião. Marquei show em três boates! E encerrei na primeira. Era para cantar durante duas horas. Quando vi que era diferente, falei pro Tonico: “Chega!”. E ele: “Mas chega mesmo!”. Viajávamos para o interior de trem, sem marcar nada, e tinha muito salãozinho de igreja que alugávamos para cantar. Já pedia uma notinha porque eram duas sessões e o dono às vezes queria ganhar nas duas. Então, ganhamos a vida e experiência onde sabíamos, que era no interior.

O último disco que a dupla gravou foi em 1994, ano da morte de Tonico?
Foi. Esse disco o Tonico não conseguiu acabar de gravar. Eu fiz a voz dele e não imaginava que podia fazer. A voz é um dom. Quem faz primeira não faz a segunda, que é mais grossa. E essa era a voz do Tonico. E quem faz a segunda não faz a primeira. Eu cantava mais fino e o Tonico mais grosso. Neste disco fiz a minha voz e coloquei a segunda, que era dele. Ele gravou umas duas, três músicas só e começou a passar mal. Coloquei-o no carro e mandei que fosse para casa. Quando pus minha voz, quando gravei Chico Mineiro, ficou todo mundo emocionado. E saiu a voz de Tonico e Tinoco.

O CD que será lançado no Arraial da Lapa comemora seus 70 anos de carreira. Como é celebrar uma trajetória como esta? Qual o repertório?
São 70 anos de carreira. 60 anos de parceria com o Tonico e mais doze anos sem ele. Então estou cantando há mais de 70 anos. A primeira música do CD eu fiz para mim e para o Tonico e celebra toda nossa andança. É muito bonita a música, a letra é muito boa. O Bonelli nos convidou para fazer o lançamento no Arrail e ficamos muito contentes porque há muito anos vamos em festas no Pelezão, entre outros lugares. No CD tem músicas que eu queria gravar e não deu tempo de gravar com o Tonico, como Santa Maria do Brasil, Tema de Lara e Canção de Amor, que nosso pai cantava.

Desde que veio para São Paulo, o senhor mora na Moóca. Qual sua relação com a Lapa?
A gente trabalhava como carteiros. Entregavamos conta de luz, conta de água e trabalhamos durante muitos anos naquela área. A Lapa é uma ponte aérea para nós! Além de ser uma dupla, eu e o Tonico trabalhávamos juntos, cada um de um lado da rua entregando correspondência. Quando não estávamos cantando, estávamos trabalhando. Íamos de bonde até a praça perto do mercado e descíamos na rua Clélia; comíamos sanduíche de mortadela com água e trabalhávamos. Nossa intenção não era vir para São Paulo para cantar, mas para trabalhar. Naquela época, as fábricas, quando pegavam operários eles ficavam até morrer. Então, tinha que morrer alguém para ter uma vaga. A gente chegava na portaria e perguntava se tava todo mundo vivo! A gente tinha uma vida muito boa!

Sente saudades dessa época?
Não. Saudade não me pega. Eu sou de hoje, o ontem já passou. É melhor assim, ‘né’? Esta pra mim é a primeira entrevista, sempre a primeira. Faço de bom gosto.

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