A vida em primeiro lugar

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Lidar com a dor do próximo não é tarefa tão simples. Mais do que dedicação requer doses extras de altruísmo e empatia. E cuidar da educação de crianças com câncer é uma missão para quem tem amor de sobra. É o caso da pedagoga Maria Inez Della Vecchia Giannelli, professora de Metodologia de Ensino Fundamental do curso de Pedagogia das Faculdades Integradas Campos Salles, na Lapa.
Foi a partir de sua tese de doutorado intitulada “Atendimento Pedagógico Domiciliar: Uma escuta para tecer laços” que nasceu o projeto de uma escola especialmente dedicada às crianças hospedadas na Associação Pró-Hope – Apoio à Criança com Câncer, após receberem alta hospitalar. Muitas destas crianças vêm de outros estados e precisam de um lugar para ficar e continuar seu tratamento. A Casa Hope é uma entidade sem fins lucrativos, que dá assistência social integral ao carente portador de câncer e a seus acompanhantes, em qualquer estágio do tratamento, desde que não haja necessidade de internação hospitalar e que o paciente venha de hospital público ou de atendimento gratuito.
Há sete anos Maria Inês implantou a escola, entre tantos, seu mais importante projeto. Neste mês que tem como marco o Dia Mundial de Combate ao Câncer, 8 de abril, conheça mais sobre esta história.
O que a motivou a criar um projeto dedicado à educação de crianças com câncer?
No início do meu mestrado perdi o meu marido. Foi uma dor muito grande e quis fazer alguma coisa para suportar, algo na área de saúde. Andei por hospitais e percebi o quanto a saúde é maltratada neste País. Tentei trabalhar como voluntária em alguns hospitais, mas diziam que eu não tinha perfil pois tinha muito conhecimento para fazer o que estava me propondo, que era orientar as pessoas no corredor, dar banho, medicação… Isso me frustrou muito e decidi unir educação e saúde. Lembrei-me de quando o meu filho ficou doente e montei uma escolinha para ele no próprio hospital. As outras crianças se aglutinavam e aquilo foi bom para elas. Propus este projeto para alguns hospitais mas acharam que unir as crianças era um risco muito grande de contágio. Hoje sabemos que é ao contrário, que a escola no hospital diminui o número de infecções. E diminui o tempo de internação. Resolvi fazer este trabalho porque descobri que as crianças ficam sem escola quando estão internadas.
Como a escola ajuda na recuperação de uma criança com câncer?
Quando uma criança tem câncer, a família toda cola nela. A mãe, se pudesse, colocava de volta ao útero. O adulto fica desesperado, quer proteger. O investimento todo da família e da criança gira em torno da doença, do sofrimento e da morte. As perspectivas são o que fazer para curar, a possibilidade de morte, a angústia da doença, do tratamento doloroso e longo… A criança regride e pára de se preocupar com ela, perde a identidade e autonomia. E para sarar precisa de tudo isso. A escola devolve o circuito de vida, a criança passa a conviver com os outros, a fazer o que é normal para a idade dela. A escola trabalha centrada no futuro, na perspectiva de vida que a criança terá depois da doença.
Essa reestruturação se estende também à família da criança?
Sim. Quando a criança vem de outros lugares para São Paulo, ela se afasta dos amigos, dos parentes, de casa e dos costumes, da alimentação… Geralmente a mãe vem junto. A criança se sente como filho único e ao mesmo tempo sente culpa pelo sofrimento da mãe. O pai, que fica distante, às vezes não agüenta e arruma outra; os outros filhos ficam com a avó… Há uma desestruturação familiar além da mudança brusca. Precisamos restituir para a criança e a família os valores, resgatar a identidade, fazer com que falem sobre o seu local de origem. Com isso, a criança ganha autonomia e vai se desligando da mãe. É ela quem tem que investir na cura dela, não é a mãe. Ela pode ajudá-la, mas não pode fazer este trabalho interno. Uma das maneiras de se fazer isso é com a leitura compartilhada. A criança começa a ler livros com a mãe; elas vão restaurar o laço, mas não é mais um laço doentio e sim sadio, formado pela fantasia, onde ela pode simbolizar tudo aquilo que precisa, porque a doença carrega um imaginário muito grande.
Apenas crianças vindas de outras cidades e estados são recebidos na Hope?
Não, temos crianças aqui de São Paulo também, mas que moram em locais com pouco ou nenhum recurso. A casa dá apoio social e médico, tanto para a mãe como para a criança, além de apoio odontológico, psicológico, terapia ocupacional; temos cursos de fotografia, de biscuit, customização de jeans para as mães. Esses cursos possibilitam que elas sejam inseridas no mercado de trabalho, porque perdem isso também. Há pais que são analfabetos também e quando começamos o projeto de leitura eles começaram a pedir para que houvesse um curso de alfabetização.
Este modelo de escola tem funcionado?
Não é uma escola igual as outras. Tenho um binômio bem complicado: total imprevisibilidade, porque nunca sei quem vai estar nem a que horas vai estar na escola. Tudo depende dos protocolos hospitalares. E eu não posso improvisar. Então tenho que trabalhar com total imprevisibilidade e nenhuma improvisação. Se eu tiver no armário um monte de exercício pronto, quando a criança chega eu resolvo a minha vida. Vou lá, tiro uma folhinha e digo: faça! Isso não é escola, isso é ocupação. E eu quis dar o sentido de criação constante. E a escola fica aberta das oito da manhã às seis da tarde. A criança entra quando pode e sai quando precisa. E é uma sala de aula só, onde tenho crianças de todas as idades e séries.
Qual o perfil do professor para trabalhar desta maneira?
Precisa ser uma pessoa com muita competência e conhecimento porque ela vai trabalhar com o imprevisto. Tem que ter jogo de cintura. Não pode ser uma pessoa que sinta pena das crianças nem que vá lá e comece a ficar doente por ver as crianças doentes. É preciso ter uma boa estrutura emocional, ser equilibrada…Eu começo um projeto com uma criança, mas ela pode ir embora amanhã. E chega outra no lugar dela. Se o professor não tiver essa percepção, fica muito frustrado. Por isso tem que ser uma pessoa bem resolvida.
Para você, até hoje, quais foram os resultados?
O melhor resultado para mim é o investimento na vida. A redescoberta das crianças do amor pela escola. E o fato de elas poderem voltar para suas escolas sem perderem o ano é uma vitória. Outra vantagem é que, por ser um grupo com crianças grandes e pequenas, há solidariedade, um ajuda o outro, e tolerância. O projeto é um referencial para mim pois acontecem coisas muito interessantes. A escola formal, de uma maneira geral, abole a doença e a morte da sala de aula. Se a criança fica doente, manda pra casa. E se fica muito tempo afastada, quando ela volta a escola tem pressa em repor o conteúdo que ela perdeu. Não aproveita o que a criança aprendeu quando ficou doente. É como se o professor nunca se desse conta da morte. E ele vai enfrentar isso na sala de aula em algum momento. Alguém vai morrer. Pode não ser o aluno dele, mas outro aluno da escola, um parente e mesmo um cachorrinho da criança. Eles não falam sobre a tristeza, querem passar logo para a tabuada. E na Casa Hope não dá pra fazer isso. A morte de um mostra claramente a possibilidade da morte de outro.
O que dizem às crianças quando um colega morre?
Damos a oportunidade dela discutir aquela dor. Uma criança, certa vez, me perguntou se ela morresse se ganharia de novo a perninha dela. Isso paralisa. O que responder? E se para ela o desejo de ter a perna novamente é tão grande que ela prefere morrer a investir no tratamento? É complicado. Outra vez uma professora me perguntou se valia a pena insistir tanto para que um aluno aprendesse matemática, já que ele poderia morrer. E ela teve a resposta do aluno: “Se eu morrer vou ficar feliz, professora, porque agora eu sei matemática”. E ele morreu logo depois. A gente tem muita mania de viver o futuro e nem sabemos se vamos chegar lá.

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